Durante este ano, os Evangelhos dos Domingos Comuns são tirados do Evangelho de Marcos. Também, no mês da Bíblia, o tema proposto para o nosso aprofundamento é “Discipulado e Missionariedade no Evangelho de Marcos”. Por isso, convém que tenhamos uma visão geral sobre esse Evangelho.
Autor e Local:
Tradicionalmente se atribui essa obra a João Marcos, primo de Barnabé (Cl, 4,10) e filho de Maria, uma das líderes da comunidade de Jerusalém (At, 12). Acompanhou Paulo e Barnabé no início das suas viagens, mas separou-se deles (At 13, 4-4. 13), embora o encontremos de novo junto a Paulo, quando este está na prisão (Cl 4, 10; Fm 14).
Marcos foi o primeiro dos quatro Evangelistas a escrever, provavelmente ao redor do ano 70, ou em Roma, ou na Galiléia – não há consenso entre os estudiosos. Tem o grande mérito de ter escolhido o termo “Evangelho” para a sua obra (Mc 1,1), e assim nos dá uma dica importante sobre a nossa maneira de ler e refletir sobre o escrito. Pois o termo, que vem do grego, quer dizer “Boa Notícia”. No tempo de Marcos era um termo bastante usado pelo Império Romano, muitas vezes para anunciar o nascimento de um filho do Imperador – pois o Império queria reforçar a idéia que o Imperador era bondoso, protetor do povo, fiador da paz e até Salvador e Senhor. Quando Marcos escolhe esse termo, ele está, contestando todo a base ideológica do Império opressor, pois afirma que ele vai contar “A Boa Notícia (Evangelho) de Jesus, o Messias, o Filho de Deus!” A Boa Nova não vem de um império explorador do povo, nem de César, mas de Deus, através de Jesus, que mostra presente o Reino de Deus no meio do povo sofrido.
Então devemos ler o Evangelho com essa idéia sempre nas nossas mentes – não é “biografia” de Jesus, nem “reportagem” sobre Jesus, mas a “Boa Notícia de Jesus”. A pergunta que deve sobressair quando lemos um trecho não é se aconteceu o evento literalmente como está contado, mas “onde está a Boa Notícia de Jesus para nós hoje, nesse texto”. Assim evitaremos discussões fúteis sobre coisas secundárias e descobriremos o que o evangelista quer nos transmitir.
Motivo do Escrito:
O escrito é destinado aos cristãos já da segunda e terceira gerações. Jesus foi morto e ressuscitado mais ou menos quarenta anos antes, e notava-se certa vacilação na fé dos cristãos diante dos sofrimentos da vida e um resfriamento na sua adesão à vivência do discipulado. Assim Marcos quer conduzir os seus leitores e ouvintes a aprofundar duas questões fundamentais interligadas – “Quem é Jesus?” e “O que significa ser discípulo/a dele?” Todos os relatos e narrativas do escrito nos conduzem para que possamos responder essas perguntas com mais clareza, e continuar a seguir Jesus pelo caminho hoje. Tenhamos essas perguntas na cabeça quando lemos e refletimos o Evangelho, ao longo desse ano.
Um Evangelho é uma obra literária, e como tal tem uma estrutura a serviço da mensagem que deseja transmitir. Como Marcos quer levar os seus ouvintes/leitores a clarificar duas perguntas básicas, “Quem é Jesus?” e “O que é ser seu discípulo/a?”, ele organiza o seu material em função desta meta. Olhemos uma possível estrutura do Evangelho:
A obra inicia-se com uma introdução, Mc 1,1 -15, que situa Jesus no tempo de João Batista, com o Batismo de Jesus no Jordão, quando ele recebe a assume a identidade e missão do Servo de Javé: “Tu é o meu Filho (= Servo), em ti encontro o meu aprazo” (I, 11). Assim, Marcos nos indica uma chave importante para entender Jesus – a espiritualidade do Servo de Javé, especialmente como ensinado pelo profeta Segundo Isaías (os quatro Cantos do Servo). Também, de uma maneira sucinta ele proclama o cerne da pregação e atuação de Jesus: “O tempo já se cumpriu, o Reino de Deus está próximo; Convertam-se e acreditem na Boa Nova” (I, 15).
Continuando, Marcos divide a primeira parte da sua obra em três blocos, a saber:
(I) 1 16 - 3, 6, que podemos descrever com a frase “As autoridades não entendem Jesus”.
(II) 3,7 - 6, 6ª, que podemos intitular “Os familiares não entendem Jesus”.
(III) 6, 6b – 8, 21 que demonstra que “Os discípulos não entendem Jesus”
Assim, de uma maneira bem pedagógica, Marcos leva o leitor a pensar: “se nem as autoridades, nem os familiares, nem os Doze entenderam Jesus, apesar de acompanhá-lo, ouvi-lo e observá-lo, será que eu o compreendo? Ou deverei mudar a minha visão de Jesus e do seu seguimento?”
Com isso chegamos ao centro do Evangelho, ao redor de que gira o documento todo. Podemos delimitar essa parte como sendo Mc 8, 22 a 10, 52. É um bloco coeso, pois usa um instrumento conhecido como “inclusão”, quando um texto começa e termina com histórias bem semelhantes. Esse bloco começa com a cura de um cego (8, 22-26, em Betsaida) e termina com a cura do cego Bartimeu (10, 46-52). No meio deste bloco encontramos o texto central, o pivô do Evangelho, em Mc 8, 27-35.
Diante da falta do entendimento dos três grupos acima citados, Jesus agora muda de tática – ele não anda mais com as multidões, mas se dedica à formação dos discípulos. Também praticamente desiste dos milagres – depois da cura do Bartimeu só tem mais um, a cura do menino epilético em 9, 14-24. O resto do Evangelho é uma caminhada até Jerusalém. Nesse caminho, Jesus procura formar os discípulos.
No caminho, ele os provoca, perguntando quem era ele na opinião dos outros. Vem muitas respostas, pois é o “diz que” – e não compromete. Mas Jesus não deixa por menos – pergunta “e vocês, quem dizem que sou?”. Somente Pedro se arrisca a responder, “Tu é o Cristo (Messias)”. Parece que acertou, mas logo Jesus desmascara o erro de Pedro (e dos outros) quando ele mostra que ser Cristo é ser perseguido por causa da coerência com o projeto do Pai, até a morte. Pedro não aceita isso, pois para ele ser Cristo é ter poder, dominar, ser triunfante nos moldes desse mundo, e remonstra com Jesus. Jesus dirige a ele uma das frases mais duras da Bíblia: “Fique atrás de mim Satanás, pois você não pensa as coisas de Deus, mas dos homens” (8 33). Depois de ter explicado o sentido de ser o Cristo, ele explicita o que quer dizer ser discípulo/a dele: “Se alguém quer me seguir, renuncie-a si mesmo, tome a sua cruz e me siga “(8, 34)”“.
Assim Marcos consegue resumir as respostas às duas perguntas fundamentais de todo cristão. Deixa claro quem é Jesus, qual é a sua missão e o seu destino, e as exigências do discipulado. Desta forma ele leva os seus leitores hoje a aprofundar as mesmas questões. Será que realmente compreendemos Jesus, ou somos como as autoridades, os parentes e os Doze, com uma visão errada dele? Estamos prontos para segui-lo, com as exigências que ele propõe? Ou preferimos um Jesus que nós mesmos projetamos que não mexe com a nossa vida, o nosso mundo, a nossa sociedade, e cujo seguimento não tem conseqüências práticas para a nossa vida no dia-a-dia? Marcos nos leva a refletir se nós não somos como Pedro, neste texto, pensando não conforme a visão de Deus, mas dos homens?
A Segunda Parte do Evangelho:
Desde o Capítulo 8, Jesus e seus discípulos estão “no caminho” – uma caminhada que leva desde Cesaréia de Filipe até Jerusalém e o grande conflito, que terminará na paixão, morte e Ressurreição de Jesus. Um momento importante nessa caminhada é o momento da Transfiguração (a tradição a localiza no Monte Tabor) em 9, 2 – 11. A chave de leitura desse evento está nas primeiras palavras: “seis dias depois”, ou seja, seis dias depois do anúncio da sua futura paixão, morte e ressurreição. Portanto, a Transfiguração tem ligação íntima com o destino de Jesus. Isso é reforçado pelo fato que ele leva consigo Pedro, Tiago e João, os mesmos que vão com ele em Getsêmani. Na Transfiguração, aparecem com Jesus as figuras de Moisés e Elias. Não quaisquer personagens do Antigo Testamento, mas Moisés, considerado pai da Lei, e Elias, o pai do profetismo – e devemos lembrar que a Lei e os Profetas significam as escrituras judaicas. Assim, Marcos mostra que Jesus está na continuidade da grande tradição das Escrituras e que segui-lo é ser te fiel com a tradição judaica. Pedro gostaria de ficar na montanha, num momento tão gostoso, mas Jesus os leva para baixo, pois devem continuar o caminho até Calvário.
A partir de Cap 11, estamos na Semana Santa. Marcos dá seis capítulos aos eventos desses dias, quase 40% do seu Evangelho (em comparação com Lucas que dedica só 20%). O texto destaca três gestos proféticos de Jesus nesses dias: a sua entrada em Jerusalém, a maldição da figueira e a expulsão dos vendilhões do Templo. Para que entendamos bem o sentido do gesto profético de Jesus na sua entrada, seria bom relembrar um trecho do profeta Zacarias: “Dance de alegria, cidade de Sião; grite de alegria, cidade de Jerusalém, pois agora o seu rei está chegando, justo e vitorioso. Ele é pobre, vem montado num jumento, num jumentinho, filho de uma jumenta... Anunciará a paz a todas as nações, e o seu domínio irá de mar a mar, do rio Eufrates até os confins da terra” (Zc 9, 9-10). Zacarias traçava as características do verdadeiro messias - seria um rei, mas um rei “justo e pobre”; não um rei de guerra, mas de paz! Estabeleceria uma sociedade diferente da sociedade opressora do tempo de Zacarias (e de Jesus, e de nós) - onde poderosos e ricos oprimiam os pobres e pacíficos! Um rei jamais entraria em uma cidade montado em um jumento - o animal do pobre camponês, mas em um cavalo branco de raça! Então Jesus, fazendo a sua entrada assim, faz uma releitura do profeta Zacarias, e se identifica com o rei pobre, da paz, da esperança dos pobres e oprimidos!
A história da figueira que seca (11, 12-14. 20-23) está ligada ao destino do Templo. Como a árvore, que era frondosa, mas não alimentava, assim é o Templo e seus ritos, bonitos, mas que não alimentavam o povo no seu encontro com Deus. Assim, como a figueira seco, o Templo será destruído.
Derrubando as mesas dos cambistas e dos vendedores de pombas, Jesus está simbolicamente impedindo o funcionamento do Templo. Ele não está contra o Templo nem os ritos, mas contra o abuso do poder religioso pelas autoridades do Templo, que fizeram dele “um covil de ladrões”. Ora, o covil não é onde os ladrões roubam, mas onde se escondem. Assim Jesus denuncia a exploração do povo pelas autoridades, que escondem a sua opressão através do abuso do nome de Deus.
Esse último gesto foi a gota de água para que as autoridades reagissem. Entenderam muito bem que o ensinamento de Jesus – que o povo esta aceitando com muita alegra – ameaçava o seu poder. Assim houve conluio entre o poder religioso, político, judiciário e econômico para acabar com Jesus e o seu movimento. O desfecho acontece na noite de quinta feira e na sexta feira. Marcos nos conta de uma maneira objetiva e sem rodeios o que aconteceu. Jesus é fiel até o fim – ele nos salva, não pelo sofrimento e dor, pois o Pai não é sádico – mas pela fidelidade até o ponto de entregar a vida. Embora se sentindo abandonado por todos, e até pelo Pai, ele ainda confia. Marcos nos conta: “Jesus deu um forte grito e expirou” (15 37). Para a nossa surpresa, agora, pela primeira vez no Evangelho, um homem declara a verdadeira identidade de Jesus: “O oficial do exército, que estava bem na frente da cruz, viu como Jesus havia expirado, e disse: “De fato, esse homem era mesmo Filho de Deus”!” O que as autoridades, os familiares e os discípulos não foram capazes de descobrir através dos milagres de Jesus, um pagão descobre “vendo como expirou”, e lembremos, ele expirou com o grito “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (v 34). Assim Marcos nos ensina que, se quisermos descobrir o Filho de Deus, não devemos correr atrás de milagres e poder, mas olhar para a figura abandonada e sofrida da cruz, fiel até o fim. Esta fidelidade é o desafio para todos os cristãos de hoje.
A história não podia terminar assim – seria uma derrota. E não terminou. Pois, sem que alguém esperasse, Jesus é ressuscitado dos mortos. Jesus venceu a morte para sempre. A cruz vence a espada, a fraqueza de Deus é mais forte do que a força dos homens. O jovem vestido de branco nos diz como encontrar-nos com o Ressuscitado: “..vão para a Galiléia...lá o verão”(cf 16,7). “Ir para a Galiléia” significa voltar à prática de Jesus, pois foi na Galiléia, entre os pobres, doentes e sem-voz, que ele demonstrava o amor, a compaixão e a misericórdia do Pai. Nós, para que sejamos discípulos/as dele, devemos “voltar para a Galiléia”, ou seja, praticar as obras de Jesus, fazer as mesmas opções, caminhar nas suas pegadas, seguindo o nosso Salvador, Ele que “andou por toda a parte, fazendo o bem” (At 10,38).
Pe. Tomaz Hughes SVD